Noite Sinistra
Boris de Pedra
Já era mais de meia noite e no corredor que
levava a ante sala doestúdio estava vazio. Uma barata agonizava com as patas
para o ar. Sealguém estivesse ali talvez sentisse nojo daquele inseto.
No prédio,onde funcionava a rádio, não havia
quase ninguém. O programa queestava no ar era o Noticiário Noturno. Era feito
ao vivo. Por isso,havia a necessidade que alguém redigisse algum texto se fosse
preciso.Uma notícia de última hora por exemplo. Para dar a ideia de que o programa
estava acontecendo naquele instante. Esse alguém era Blanche.
Blanche Richards era o seu nome. Escrevia textos
sob encomenda Trabalhava como ghost writer. A pessoa que pagava pelos seus
serviços sempre assinava. Isso acabou virando sua fonte de renda.
O mágico Houdini utilizou os serviços de ghost
writer de H.P. Lovecraft. Ela, Blanche,não tinha o que reclamar dos valores
recebidos. Tinha o hábito devagar pela rádio durante as madrugadas.
Assim, se alguém estivesse precisando de uma
mensagem sabia onde poderia a encontrar.Às vezes o locutor escalado para aquela
jornada nem chegava a vê-la.
Entrava no estúdio e por lá ficava até a hora de
ir embora. Tinha águae uma garrafa térmica contendo café.
Após o noticiário noturno entrava um programa
gravado. Era do Padre Doveque. Tinha uma boa audiência. O padre havia ficado
famoso por ter participado de um reality show quando ainda era seminarista. Sua
participação despertou a atenção da mídia. Ganhou o prêmio e levou a fama.
Anos depois, já ordenado padre, chegou a gravar
um disco com músicas de louvor. Isso manteve os holofotes acesos. Mas,
atualmente, tem atuado em outra área. O seu programa era um reflexo imediato de
sua nova atividade. Padre Doveque praticava exorcismo. Teve um caso que ficou
famoso. Foi até televisionado. Altos indíces de audiência. Uma criança,
especificamente uma menina, havia sido possuída por espíritos do mal. Devandra
era o seu nome. Ele conseguiu expulsá-los e a população foi ao delírio.
Durante o programa isto sempre era lembrado
subliminarmente. Blanche deixou a rádio antes que o programa se iniciasse. Algo
havia chamado sua atenção pela janela. A visão que tinha era de um cemitério.
Percebeu uma movimentação de vultos. O ar
condicionado ligado impedia que identificasse qualquer tipo de som. Aquilo
despertou sua curiosidade. Resolveu conferir.
Vestiu sua capa preta, uma espécie de sobretudo
com capuz, e se encaminhou naquela direção. Chegando lá percebeu que alguma
coisa havia acontecido.
O portão estava aberto. Entrou. Não havia ninguém
na guarita. Havia um zumbido de um radinho de pilha. Alguém estivera ali. O
vento soprava forte e fazia barulho. Ela caminhou por entre os túmulos e se
deparou com um pé de botina. Deveria pertencer a um daqueles vultos que havia
observado da janela da rádio. Continuou em frente. Logo percebeu do que se
tratava. Eram ladrões de túmulos.
Violadores de sepulturas. Um bando de canalhas e
cretinos. Mas algo havia os assustados. O que poderia ter acontecido?
_ "Isto só pode
ser coisa do sobrenatural"... foi isso que ouviu ao voltar até a guarita.Era a voz do Padre Doveque. A frequência diminuiu
e a pequena caixinha de plástico começou a chiar novamente.
Então, outro barulho ganhou destaque. Era o
portão que estava rangendo com a ação do vento. Mas ela não teve tempo para
ficar pensando nisso.Seguiu seus instintos. Alguma coisa lhe dizia para tirar
isto a limpo.
Foi o que fez. Respirou fundo e apertou o passo. A noite escura
não parecia intimidarseu ímpeto. Seguiu em passos firmes e seguros pelas
sombras. A imagem de Harry Houdini veio a sua cabeça. Ele costumava desmascarar
aqueles que diziam ter poderes paranormais.
Ele, Houdini, se infiltrava em sessões mediúnicas
e identificava os truques utilizados para ludibriar os mais incautos. Talvez
por isso acabou sendo calado. Mas a perspectiva da morte não a abalava. Ela
sentia que algo estava tentando revelar um sinal.
_ "Será que tudo isso
tem um significado? Alguma coisa em comum?".
Enquanto caminhava a passos rápidos questionava.
O sumiço de Bernardo Belisário, o investidor, aconteceu após um casamento
celebrado pelo Padre Doveque. Na noite anterior a igreja dele havia
sido,literalmente, saqueada.
_ "Haveria alguma ligação?".
Foi então
que se assustou com uma coruja que passou voando ao seu lado. Estava absorvida
naquele pensamento. Não havia nenhuma evidência plausível de que os ladrões de
arte sacra fossem aqueles assustados vultos do cemitério. Mas de alguma forma
estava associando estas possibilidades.
As ruas estavam desertas. Naquela hora os
semáforos não ficavam nem vermelho nem verde. Apenas piscavam a luz amarela.
Mas isto também não chamava sua atenção. Esta estava canalizada em uma única
direção.
Um mistério a absorvia e a escuridão era sua
cúmplice. Aumentou a velocidade dos seu passos. Após alguns minutos neste ritmo
pode perceber uma espécie de vulto se movendo. Não parecia ser alguém assustado.
O movimento era mais cadenciado.
Ou seja, não demonstrava estar afobado. Parecia
relutante. Enfim, sua intuição estava correta.Pensou em correr. Possivelmente
sua correria não surtiria efeito.Poderia se fazer notar por aquele vulto
distante. Não era essa suaintenção. Preferiu continuar no mesmo ritmo.
Viu que o vultopraticamente se arrastava. Assim,
estava se aproximando cada vez mais sem chamar atenção. Era como se sentisse a
sensação do dever cumprido. Se desligou do mundo ao seu redor.
Não se tocou que ainda estava sendo observada
pela coruja. Estava mais preocupada com outra criatura da noite. O vento
assobiava uma canção gótica. Essa poderia ser uma licença; poética para se
referir ao barulho que a ventania provocava. Blanche seguia em passos firmes.
Por um instante pensou tratar-se de um morador de rua, um mendigo em busca de
abrigo em meio àquela noite sinistra.
Talvez, pelo fato de o vulto estar mais próximo
do seu campo de visão. Suas vestes aparentavam estar sujas como se fosse um maltrapilho.
A sua curiosidade ficou mais aguçada. Tentou controlar a ansiedade. Não queria
especular com a imaginação. Tinha que passar isto a limpo. Foi então que
recebeu o sinal.
Um pequeno papel foi levado em direção ao seu
rosto. Instintivamente levou a mão até a altura da cabeça para se desviar do
que se revelou ser um flyer, um panfleto de divulgação de um show de uma banda
derock.
Era uma espécie de xerox e em preto e branco se
destacava o nome "Noite Macabra". Apesar das letras estarem
estilizadas conseguiu fazer a leitura, assim como conseguiu identificar o local
da apresentação como sendo Limbo. Segundo aquelas informações o horário do
evento estava marcado para a meia noite.
Aquilo tudo começava a fazer sentido. Não sabia
ainda o que isto significava. Mas havia encontrado a chave para desvendar o
mistério.Entretanto, o vulto havia saído do seu campo de visão. Desapareceu.
Mas ela sabia para onde teria ido. Tudo indicava
que estava próxima do lugar que estava acontecendo a apresentação. Era como se
tivesse visto com seus próprios olhos o suposto vulto entrando lá.Foi com esta certeza
que seguiu em frente.
Todavia, se descuidou um pouco e baixou a guarda. Então,
tomou um grande susto ao se deparar com um homem que quase passou por cima
dela. Não chegou a esbarrar. Mas apareceu de surpresa. Não havia enviado nenhum
aviso. Se esquivava pela noite como uma assombração
Além de tudo era um sujeito grosso. Nem se
desculpou. Aparentemente nem se importou ou chegou a perceber sua presença. Foi
essa a impressão que Melquíades causou. Realmente, ele parecia estar apressado.
Então, um portão foi aberto e ele entrou no Limbo.
Blanche se refez do susto e agora sabia onde
aquele vulto, que ela seguiu do cemitério, havia entrado. Foi então que ao
invés de ter saciado sua curiosidade ficou ainda mais intrigada. Havia algo de
estranho comaquele sujeito com o qual havia quase esbarrado. Ele parecia estar sangrando.
E aquele não era o lugar ideal para se ir quando estamos sangrando. Foi isso
que ela pensou ao ver uma poça de sangue no chão.